Cuidado com o cheque em branco
“Ahumanidade enfrenta uma crise global. Talvez a maior crise da nossa geração. As decisões que as pessoas e os governos tomarem nas próximas semanas moldarão provavelmente o mundo nos próximos anos. Elas moldarão não apenas os nossos sistemas de saúde, mas também a nossa economia, a política e a cultura.” O parágrafo é do historiador e escritor israelita Yuval Noah Harari. Foi publicado no Financial Times a 20 de março, mas é agora tão atual como então.
Sete meses depois, temos já uma ideia de mudanças na economia e na sociedade que vieram para ficar, desde o retrocesso na globalização ao teletrabalho, da digitalização à maior preocupação com a sustentabilidade. Todas elas têm riscos, mas inegáveis vantagens.
Há outro capítulo muito mais preocupante, onde estão o cerceamento de liberdades e a força autoritária do Estado. A nossa vida foi invadida por sinais de proibido e obrigatório, acompanhados de pesadas multas para quem não cumprir. São os limites à reunião e circulação, as restrições à atividade económica ou aos despedimentos.
Em nome do combate à pandemia, e da vida, vamos aceitando tacitamente um colete de forças que vai deixando cada vez menos pontas soltas. A covid-19 tornou-se um cheque em branco político para o cerceamento de liberdades e para um Estado senhor de um poder de má memória.
A intenção de tornar obrigatório o “download” de uma aplicação é relevadora de como o que era inaceitável se pôde tornar possível ou, pelo menos, admissível.
São assim as decisões que governos por toda a Europa vêm tomando. A maioria da população relativiza, olha para elas como meras exceções. Sem darmos conta, fomos ratos de laboratório numa experiência de pendor autocrático. E a questão está em saber o que dessa experiência vai ficar na nossa política e cultura ou se vai mesmo tudo desaparecer.
“Quando escolhermos entre alternativas, devemos perguntar-nos não apenas como ultrapassar a ameaça imediata, mas em que mundo vamos habitar quando a tempestade passar”, escreveu Yuval Noah Harari no mesmo artigo. Questionamo-nos pouco, porque acreditamos que finda a pandemia tudo voltará exatamente ao que era. Será importante não dar isso por garantido.