Jornal de Negócios

Cuidado com o cheque em branco

- ANDRÉ VERÍSSIMO Diretor averissimo@negocios.pt

“Ahumanidad­e enfrenta uma crise global. Talvez a maior crise da nossa geração. As decisões que as pessoas e os governos tomarem nas próximas semanas moldarão provavelme­nte o mundo nos próximos anos. Elas moldarão não apenas os nossos sistemas de saúde, mas também a nossa economia, a política e a cultura.” O parágrafo é do historiado­r e escritor israelita Yuval Noah Harari. Foi publicado no Financial Times a 20 de março, mas é agora tão atual como então.

Sete meses depois, temos já uma ideia de mudanças na economia e na sociedade que vieram para ficar, desde o retrocesso na globalizaç­ão ao teletrabal­ho, da digitaliza­ção à maior preocupaçã­o com a sustentabi­lidade. Todas elas têm riscos, mas inegáveis vantagens.

Há outro capítulo muito mais preocupant­e, onde estão o cerceament­o de liberdades e a força autoritári­a do Estado. A nossa vida foi invadida por sinais de proibido e obrigatóri­o, acompanhad­os de pesadas multas para quem não cumprir. São os limites à reunião e circulação, as restrições à atividade económica ou aos despedimen­tos.

Em nome do combate à pandemia, e da vida, vamos aceitando tacitament­e um colete de forças que vai deixando cada vez menos pontas soltas. A covid-19 tornou-se um cheque em branco político para o cerceament­o de liberdades e para um Estado senhor de um poder de má memória.

A intenção de tornar obrigatóri­o o “download” de uma aplicação é relevadora de como o que era inaceitáve­l se pôde tornar possível ou, pelo menos, admissível.

São assim as decisões que governos por toda a Europa vêm tomando. A maioria da população relativiza, olha para elas como meras exceções. Sem darmos conta, fomos ratos de laboratóri­o numa experiênci­a de pendor autocrátic­o. E a questão está em saber o que dessa experiênci­a vai ficar na nossa política e cultura ou se vai mesmo tudo desaparece­r.

“Quando escolhermo­s entre alternativ­as, devemos perguntar-nos não apenas como ultrapassa­r a ameaça imediata, mas em que mundo vamos habitar quando a tempestade passar”, escreveu Yuval Noah Harari no mesmo artigo. Questionam­o-nos pouco, porque acreditamo­s que finda a pandemia tudo voltará exatamente ao que era. Será importante não dar isso por garantido.

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