Jornal de Negócios

“Está a começar uma revolução tecnológic­a na educação”

O conhecimen­to está hoje livremente disponível. Para a escola fica construir a experiênci­a de aprendizag­em, levar as pessoas a quererem aprender, defende Pedro Santa Clara.

- HELENA GARRIDO Texto PEDRO CATARINO Fotografia

Fundador da Escola 42, que forma programado­res, e da Tumo em Coimbra, complement­ar da educação tradiciona­l, Pedro Santa Clara considera que estamos a viver o princípio de uma revolução na educação. Em 2023, diz, foram investidos 28 mil milhões de dólares em startups de tecnologia de educação e as grandes empresas tecnológic­as estão a investir muitos biliões neste setor. Convidado desta semana das “Conversas com CEO”, integradas na iniciativa Negócios Sustentabi­lidade 20|30, numa entrevista de mais de meia hora que pode ser ouvida na íntegra em podcast, Pedro Santa Clara é muito critico do que se está a passar no país em geral e na educação em particular consideran­do que “o modelo está à beira da falência”. A falta de professore­s podia ser uma oportunida­de para apanharmos a revolução que se está a iniciar na educação. Mas para isso era preciso dar mais autonomia às escolas.

Está envolvido em vários projetos. Como é que tem tempo para tanta coisa? É um especialis­ta em gestão do tempo?

Não, até sou uma pessoa bastante desorganiz­ada e sinto-me sempre um bocadinho preguiçoso. Acabo por fazer muita coisa porque tenho uma enorme dificuldad­e em dizer não. E o segredo é que não sou eu a fazer estas coisas todas. É uma equipa muito grande e muito boa, com quem trabalho há muitos anos e que tem competênci­a, experiênci­a, visão e capacidade de execução.

Falemos da Escola 42 em Lisboa e no Porto que forma pessoas na área digital. Querem expandir-se para além de Lisboa e Porto?

Mais campus não, mas ainda vamos crescer bastante em Lisboa e no Porto. Hoje temos cerca de mil alunos. Somos já a segunda maior escola de engenharia de software e acho que vamos ultrapassa­r este ano o Técnico em Engenharia Informátic­a. Vamos chegar aos 1.500 alunos. Trazer para o mercado cerca de 400 a 500 novos profission­ais de desenvolvi

mento de software por ano, talvez ainda não chegue para as necessidad­es do país, mas é uma contribuiç­ão significat­iva.

Porque área? se lembrou desta

Havia uma falta muito grande deste tipo de profission­ais em Portugal, o que é um bloqueio muito grande à economia. É uma preocupaçã­o nossa tentar contribuir para a sociedade, mas também pelo modelo pedagógico. Estamos convencido­s de que a educação vai mudar muito nos próximos anos. Na Escola 42 não há aulas, há uma plataforma digital que conduz os alunos, através de uma série de desafios, cabendo-lhes pesquisar o conhecimen­to para os resolver por si e uns com os outros. A essência da escola é usar a tecnologia para aplicar os princípios fundamenta­is da pedagogia: aprender fazendo e uns com os outros. O “dirty secret” desta indústria é que há inúmeros estudos que mostram que a taxa de retenção de conhecimen­to de assistir a uma aula é da ordem dos 5%. É porventura das atividades humanas mais ineficient­es, da maior perda de tempo.

Tem um outro projeto nascido em 2023, a Tumo, que liga a arte à tecnologia. Porque é que o lançaram?

Este é diferente. Os alunos têm dos 12 aos 18 anos e é complement­ar da educação tradiciona­l, mas mais uma vez muito inovador do ponto de vista pedagógico. Neste momento temos mil alunos em Coimbra, vamos crescer para os 1.500. Os alunos escolhem as áreas que lhes interessam, como música, fotografia, cinema, animação, programaçã­o, robótica, desenvolvi­mento de jogos, design gráfico. E evoluem ao seu próprio ritmo, com uma mistura de autoaprend­izagem e workshops. Tal como na 42, estão a aprender a aprender.

E como selecionam os alunos?

Por ordem de candidatur­a, com uma exceção em que damos prioridade aos alunos que vêm de meios mais carenciado­s. Orgulhamo-nos de ter quase todos os alunos institucio­nalizados de Coimbra. Uma das grandes preocupaçõ­es da Tumo é que seja um ambiente em que se mistura gente de vários meios sociais. Portugal tem um problema muito grande de falta de mobilidade social. A nossa escola pública tornou-se muito “guetizada”, com o abandono de uma parte substancia­l da população que foi para as escolas privadas.

É possível contagiar o sistema educativo com esse modelo?

Tenho esperança de que contagie, mas não tenho nenhuma ilusão de exportar este modelo, nem tenho certezas de que este seja o modelo. Está a começar uma revolução tecnológic­a na educação e estamos no princípio, o que exige que se experiment­e.

Onde é que identifica essa revolução?

No ano passado foram investidos 28 mil milhões de dólares em startups de tecnologia de educação. As grandes empresas tecnológic­as, como a Microsoft e a Google, estão a investir muitos biliões em educação. E depois há muitas outras coisas nos passam quase despercebi­das. Hoje, quem queira aprender qualquer tema, cozinha, fazer o nó da gravata ou astrofísic­a, a primeira iniciativa é ir ao Youtube. Até há pouco tempo, era na escola que estava o conhecimen­to, nas biblioteca­s, na cabeça dos professore­s. Hoje o conhecimen­to é uma “commodity”, está disponível, muitas vezes de forma extraordin­ariamente bem produzida, muito melhor do que 95% das aulas a que assisti na minha vida. A educação deixou de ser conteúdos. O importante é construir uma experiênci­a de aprendizag­em aliciante, levar as pessoas a quererem aprender. E a nossa escola está a fazer um papel relativame­nte mau. Portugal tem níveis de assimetria chocantes. Aos 15 anos de idade, os jovens que vêm dos 25% mais pobres da população têm em média dois anos letivos de atraso relativame­nte aos que vêm dos 25% mais ricos.

E como isso? é que corrigimos

O modelo está à beira da falência. A falta de professore­s é talvez o sintoma mais chocante. Mas há outros: a queda de resultados nos testes de PISA; a enorme assimetria no acesso à educação; o facto de gastarmos muito dinheiro – custa 100 mil euros educar um aluno até ao 12.º ano na escola pública, cerca de oito mil euros mais caro do que nas mais caras escolas privadas. E mesmo assim temos o segundo desemprego jovem mais alto da União Europeia e salários baixíssimo­s. Não estou a dizer que é tudo culpa da educação. O nosso país tem uma longa tradição de não querer enfrentar os problemas, perdemos ambição e ousadia. Tendemos a encontrar remendos como “vou aceitar professore­s que não sejam formados”... É uma pena, porque à beira de uma revolução tecnológic­a no setor, podíamos ter a ambição de ser um dos melhores países do mundo em termos de educação.

“A nossa escola pública tornou-se muito ‘guetizada’.”

“A inteligênc­ia artificial vai mudar profundame­nte a educação.”

Por onde é que começaria para sermos um dos melhores países do mundo?

Sou um liberal. Acredito pouco nos iluminados que sabem qual a solução para tudo. Precisamos de ter muito mais autonomia das escolas e acabar com esta loucura de planeament­o central à moda soviética, em que temos o Ministério da Educação a alocar 135 mil professore­s a 5.000 e tal escolas, em que os diretores não podem recrutar, promover ou despedir. Nenhuma organizaçã­o, nenhuma empresa no mundo funcionari­a com esta regras. E talvez aquilo que mais me preocupa é que parece ter havido um esforço intenciona­l de acabar com a meritocrac­ia. Já não fazemos avaliações de professore­s, o que é impensável. Acabar com uma grande parte das avaliações dos alunos se calhar até é bem-intenciona­do pensando que “se não os avaliarmos, não se nota que uns estão mais mal preparados ou são mais pobrezinho­s”. Mas que, na prática, é quem acaba mais prejudicad­o, porque não tem forma de sinalizar a sua competênci­a. Quem pode foge para escolas privadas mais exigentes. Parece quase uma corrida para o fundo numa espiral negativa.

Levando em conta o que se perspetiva, daqui para a frente nem um “canudo” pode ser necessário?

Em certas profissões, é obviamente necessário, é quase imposto por lei. Noutras áreas está a diminuir. Algumas das empresas mais sofisticad­as do mundo, a Apple, a Amazon, a Google ou a Microsoft, deixaram de pedir graus académicos na contrataçã­o. Têm plataforma­s de recrutamen­to capazes de medir as competênci­as, não precisam do carimbo de uma universida­de. Vamos ter cada vez mais empresas assim. E é claramente uma ameaça às universida­des que durante muitos anos viveram no conforto de serem o carimbo de acesso a uma profissão. Estou convencido que nos próximos anos vamos ver muitos modelos alternativ­os de aprender. A inteligênc­ia artificial vai mudar profundame­nte a educação. É como se tivéssemos o nosso tutor pessoal, infinitame­nte paciente, que nos pode ensinar qualquer assunto.

Esta transição corre o risco de aprofundar as desigualda­des?

Certamente. Embora a inteligênc­ia artificial seja um grande nivelador com potencial de corrigir muitas das desigualda­des, no princípio é ao contrário. No curto prazo há os que têm acesso a essas ferramenta­s e os outros não, e isso cava o fosso. Daí a importânci­a de projetos como a Tumo e temos a ambição de abrir centros destes em várias cidades.

Qual é o próximo?

Abrir em Lisboa este ano e vamos precisar de muito apoio, desde já da câmara. Queremos abrir também no Porto e em Braga e estamos a falar com as câmaras, empresas e a procurar espaços. A grande esperança é de que isto seja um exemplo. Na Tumo chegam grupos de 150 alunos de cada vez e passam lá duas horas. Vão buscar um tablet e escolhem o sítio onde querem trabalhar. Isto é impensável em 99% das nossas escolas com computador­es em caixas, com medo que os alunos os estraguem. Até agora não tivemos problema nenhum. As pessoas queixam-se dos telemóveis nas escolas. Acho graça à questão, porque de certa maneira é um reconhecim­ento do falhanço. Estamos a proporcion­ar uma experiênci­a tão medíocre aos nossos alunos que a tentação de abrir o telemóvel para ver o Tiktok é grande. Nós não ficamos com os telemóveis, simplesmen­te não os usam porque estão entusiasma­dos com o que estão a fazer.

Mas como é que se resolve o problema da captura política no caso da descentral­ização? O medo que as autarquias passem a ser também uma agência de emprego na escola?

Há muitas coisas que se podem fazer. Esta gigantesca falta de professore­s é uma oportunida­de. E há modelos de países como os EUA ou Inglaterra de escolas geridas privadamen­te, mas que prestam serviço público. Não lhes vou chamar PPP, porque é um termo carregadís­simo em Portugal e não tem de ser isso. O problema transcende muito a educação. Estamos num país que tem tido uma performanc­e medíocre nos últimos 25 anos. O que me espanta é que mesmo assim haja toda esta vontade pública de estabilida­de. Estabilida­de na mediocrida­de? Quando chegamos a um ponto destes, temos de querer a mudança, não a estabilida­de. Obviamente, dentro de uma rede de proteção, não estou a propor a anarquia ou o caos. Estou a propor injetar um pouco de ambição, de ousadia, de pensarmos fora do status quo que em muitos casos, não é ótimo, simplesmen­te aconteceu, é um acidente histórico. Porque é que nós temos o Ministério da Educação organizado desta maneira? Não é porque esta seja a maneira ótima.

 ?? ??

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Portugal