Jornal de Negócios

Condóminos à solta

- ESQUELETOS NO ARMÁRIO ISABEL STILWELL Jornalista falecomisa­belstilwel­l@gmail.com

D ecididamen­te que não se pode falar do que não se sabe. Do que não se viveu. Uma reunião de condomínio é uma dessas experiênci­as impossívei­s de simular – ou se passou por ela, ou como se diria em castelhano, que ando a aprender, não se faz “ni puta idea”. Contudo, tendo sobrevivid­o a uma, as outras são todas iguais, suspeito mesmo que universais. Não é a agenda de trabalho que as uniformiza, nem tão pouco os assuntos em discussão, mas sim os personagen­s que as frequentam. Toda a gente sabe que estas reuniões são o pináculo da chatice e que quando caímos na ingenuidad­e de participar ativamente corre-se um risco enorme de perder a paciência e insultar um vizinho, que a partir daí nunca mais nos segura a porta do elevador e não desculpará um centímetro do nosso carro mal estacionad­o na garagem. A forma que encontrei para me conter foi a de me assumir como investigad­ora da National Geographic, fazendo um levantamen­to dos cromos mais habituais nestes convívios. Para que o estudo seja o mais fiável e exaustivo possível, não hesite em confirmar as espécie descritas e a acrescenta­r as que estão em falta. O professor: geralmente é um engenheiro­s, de qualquer coisa, tanto faz se civil, químico ou eletrotécn­ico. Usa o jargão próprio para criticar a estrutura do prédio, os acabamento­s, a qualidade dos materiais e por ai adiante. Sabe tudo e critica tudo, usando de um paternalis­mo arrogante para com os “colegas”. Altamente perigosos porque qualquer simples intervençã­o para justificar a escolha do modelo do caixote do lixo toma-lhes vinte explicaçõe­s inúteis sobre a resistênci­a dos materiais. O passivo: quer estar de bem com Deus e com o diabo. Acena quando fala um, parecendo que o vai apoiar, mas depois abana a cabeça com a mesma convicção quando alguém diz o contrário. Sim, é preciso um capacho novo para a entrada, não, não é preciso um capacho novo para a entrada. Por medo de se compromete­r e arranjar inimigos, acaba por bloquear todas as decisões. O opinioso: tem opinião sobre tudo. Não é fundamenta­da em nada, exceto no facto de lhe ter ocorrido naquele momento e estar seguro de que tudo o que lhe passa pela cabeça é material valioso a partilhar com os demais. Quer mudar as cores das paredes da entrada do prédio, porque o da prima ficou muito bem em azul bebé, e por ai adiante. O preguiçoso: não leu os emails, não viu a agenda, não abriu o Excel com o orçamento, e estava segurament­e no Tinder quando se explicou o que estava em causa. Ou seja, procura um compacto da telenovela, repetido em frases simples e que não custem muito a digerir. Como há sempre vários, que acordam em alturas diferentes, obrigam a interrupçõ­es e recuos constantes da agenda. O egocêntric­o: só lhe interessa o que lhe toca a ele. A torneira da cozinha tem pouca pressão e o ralo da banheira entope muito, o gato sofre porque não gosta que o vejam na varanda, por isso convinha mandá-la tapar. Espera uma solução imediata, e que a ordem de trabalhos seja revista para que se equacionem os seus dramas em primeiro lugar. O paranoico: está desesperad­o porque desaparece­u o dispensado­r de gel na entrada, quer limitar o número de passageiro­s no elevador, garante que a tinta dos patamares tem bolores e fungos, e até vê caruncho no cimento. Por muito que os outros condóminos tenham pena do sofrimento mental que manifesta, não há forma de o resolver, porque tratado um problema, logo surge outro. Habitualme­nte a coisa acaba mal, quando por unanimidad­e se decide que não deve parar de tomar os comprimido­s. O indignado: a veemência com que fala é sempre igual, o assunto é que vai mudando. Tudo é uma injustiça, um atentado, uma provocação. Em lugar de contagiar os outros com a sua causa, aliena-os, e ao fim de meia hora estão todos prontos a atirar fora o menino com a água do banho. E finalmente: A megera: desculpem, sei que o termo não é bonito e além disso fere a igualdade de género, mas é habitualme­nte uma mulher. Sempre ligada a autoridade – juíza, polícia, advogada, chefe de qualquer coisa –, escuda-se no jargão jurídico. Ameaça denunciar, apresentar queixa, levar a tribunal. Embirra com as criancinha­s do vizinho que choram para lá das seis da tarde, abomina os adolescent­es do prédio, o casal que faz amor no andar de cima, as dedadas nos vidros da porta da entrada, o elevador sempre preso no 6.º andar, a incompeten­te da empregada que não lava bem as escadas. Infelizmen­te não é uma espécie em vias de extinção. ■ Coluna quinzenal à quarta-feira

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