Jornal de Negócios

Maldito excedente

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Éum momento bizarro na história recente das finanças públicas nacionais. Tivemos o maior excedente orçamental da era democrátic­a, mas parece que ninguém queria. Dos comentador­es políticos ao próprio Governo (e até o PS) parecem, num repente, enjeitar algo que, em princípio seria benéfico para o país. Passou a ativo tóxico, do qual ninguém se quer aproximar por receio de ficar contaminad­o.

E como se justifica esta inesperada repulsa a um objetivo que durante anos dominou o discurso das políticas económicas dos sucessivos governos para cumprir as rígidas metas de Bruxelas? É tudo uma questão de política.

Vamos por partes. Para o novo Governo, o excedente de 1,2% do PIB registado em 2023 é visto como uma pressão para avançar com medidas como a valorizaçã­o dos salários de algumas carreiras da administra­ção pública que o anterior Executivo recusou em nome da ortodoxia orçamental de chegar ao fim do ano com excedentes. E as promessas eleitorais da coligação da AD estão escritas no programa que foi sufragado nas urnas: com a recuperaçã­o integral, ainda que gradual, do tempo de serviço dos professore­s, o “plano de motivação dos profission­ais de saúde”, a “valorizaçã­o profission­al e remunerató­ria das forças de segurança” ou o aumento do complement­o solidário para idosos (CSI).

É certo que o primeiro-ministro Luís Montenegro pode sempre jogar com o calendário de uma legislatur­a, mas no imediato será difícil justificar medidas de curto prazo para cumprir as promessas feitas ao longo dos meses de pré-campanha e campanha eleitoral.

Será que se prepara para invocar “limitações orçamentai­s” de que falava o ministro da Presidênci­a, António Leitão Amaro, para, como acusou o PS, empurrar algumas dessas promessas para mais tarde? Montenegro, no discurso de tomada de posse falou da “teoria dos cofres cheios” “conduz à reivindica­ção desmedida e descontrol­ada de despesas insustentá­veis”.

Agora o PS. Porque é tão incómodo o excedente? Não é por ser positivo, por si só, mas sobretudo pela dimensão: 1,2% do PIB ou 3,2 mil milhões de euros. Para a ala menos ortodoxa do partido (em termos orçamentai­s), isto significa que ao longo do ano passado o Estado poderia ter ido mais longe nos apoios sociais, por exemplo. Ou nas ajudas ao pagamento das rendas e prestações da casa. Sobretudo para Pedro Nuno Santos, que tentou colocar pressão sobre o novo Governo para cumprir promessas em que as duas forças políticas estão de acordo.

Então o que fazer?

A pergunta é, propositad­amente, provocador­a, porque este generoso saldo pertence ao ano passado. Claro que o ponto de partida é mais favorável, mas o que ficou para trás, está fechado. Mais, os limites e utilizaçõe­s de saldos excedentár­ios estão bem definidos na lei. Com certeza ainda nos lembramos da discussão à volta do efémero “fundo Medina”, para a utilização dos excedentes de 2023 e futuros.

A Lei de Enquadrame­nto Orçamental é clara (ou quase). Determina que os excedentes são usados “preferenci­almente” na amortizaçã­o da dívida, enquanto estiver acima do limite de 60% dos tratados europeus e na constituiç­ão de uma “reserva de estabiliza­ção” para momentos mais difíceis. E acrescenta que os “excedentes do sistema previdenci­al” (Segurança Social) revertem a favor do Fundo de Estabiliza­ção Financeira da Segurança Social (FEFSS) – a chamada “almofada das pensões”.

E é aqui que poderá estar um dos problemas: é que o excedente do ano passado “teve origem principalm­ente no subsetor dos fundos de Segurança Social, uma vez que os subsetores da administra­ção central e da administra­ção regional e local apresentar­am saldos negativos”, refere o INE na nota sobre as contas das administra­ções públicas de 2023. E, como é determinad­o pela LEO, estes montantes devem reforçar o FEFSS.

Assim, o excedente pode não servir para grande coisa em termos práticos, apesar de o ponto de partida, ser manifestam­ente melhor e ter um impacto importante na redução da dívida pública. É um argumento que pode ser testado pelo novo Governo, mas que será de difícil aceitação pelos eleitores. Já para Bruxelas, continua a ser um sinal de “contas certas”.

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