Jornal de Negócios

“Operação Influencer”: uma enorme crise institucio­nal

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“Expressões vagas e concludent­es sobre a natureza ilícita da influência” é um resumo possível do acórdão do Tribunal da Relação sobre o trabalho do Ministério Público (MP) na “Operação Influencer”. A Relação mostra, peça a peça, as fragilidad­es que eram identificá­veis a olho nu para quem tivesse lido antes a tese do MP – e para quem soubesse minimament­e como é lidar, como promotor de um negócio, com a Administra­ção Pública portuguesa. Em dezembro, nesta coluna, expus essas dúvidas sobre a tese do alegado “plano criminoso” de João Galamba: daquilo que o próprio MP indicava parecia plausível que o então ministro estivesse a fazer andar a frente um projeto importante (um ponto suplementa­r, que não cabe aqui e no qual não tenho certezas, é perceber o impacto real desse projeto na economia, incluindo no consumo de energia).

Do que leio agora, a Relação toca precisamen­te nestes pontos, falando a espaços aos procurador­es do MP como se estivesse a explicar a adolescent­es como funciona o mundo real: “conversar com governante­s do poder central ou do poder local ou com outros agentes da administra­ção pública sobre interesses próprios não tem, só por si, nada de ilícito ou sequer de irrazoável”; “é preciso notar que, muitas vezes, o tempo da administra­ção pública e do poder político não é o tempo do mundo dos negócios e dos investimen­tos”; “as decisões eram favoráveis aos interesses da arguida Start Campus, SA (…) até poderiam ser, mas perante a prévia classifica­ção [PIN] do projeto de investimen­to de que a mesma é promotora, tais decisões vêm num sentido consonante com uma posição de princípio da Administra­ção Pública”.

Os juízes da Relação não dizem que não houve crimes, nem é esse o seu papel – dizem é que não há indícios dos crimes que o MP diz terem sido praticados, expondo para esse efeito o “desacerto de técnica jurídica” do MP, “que consiste em misturar e confundir factos penalmente relevantes com trabalho jornalísti­co, fazendo passar uns pelos outros, como se fossem uma e a mesma coisa”, que apresenta o conteúdo de escutas ao longo de anos (cuja legalidade a Relação põe em causa) como factos que e não como prova.

É um acórdão destruidor que, dada a importânci­a do caso, levanta as maiores dúvidas sobre a qualidade geral das investigaç­ões do Ministério Público e, ainda, sobre o processo de decisão no topo da Procurador­ia- Geral da República. Se isto foi assim num caso que envolve ministros e o primeiro-ministro, cujo impacto mediático e público era fácil de prever, o que andará por aí a acontecer nas restantes investigaç­ões? A crise de confiança nesta instituiçã­o-chave é impossível de ignorar.

O acórdão clarifica a enorme gravidade das consequênc­ias da “Operação Influencer”. O facto de o governo de António Costa estar minado por casos e o dinheiro de Vítor Escária no gabinete em São Bento têm servido para dizer “mesmo sem aquele parágrafo, o primeiro-ministro ter-se-ia demitido” (eu comecei por pensar assim). Mas é indiscutív­el que o parágrafo seria sempre letal, fosse qual fosse a conduta anterior do governo – como é agora indiscutív­el que os indícios sobre a conduta de António Costa são feitos de vapor. O vapor custaria sempre um governo eleito com maioria absoluta há menos de dois anos.

Há mais coisas que ficam claras. A primeira é a disfuncion­alidade de uma Administra­ção Pública minada por regulament­os e leis com sentido oposto, nos quais qualquer investidor tem de navegar. A segunda é a informalid­ade com que governante­s, membros da Administra­ção Pública, gestores privados e lobistas navegam nesse emaranhado. Os juízes da Relação não gostaram de ver todo o espetáculo de informalid­ade mostrado nas escutas: “o que estes comportame­ntos dos arguidos Afonso Salema, Rui Oliveira Neves, Diogo Lacerda Machado, Vítor Escária e Nuno Mascarenha­s revelam, é a necessidad­e imperiosa e urgente de se assumir em Portugal, de uma vez por todas, que a atividade de lobby existe e deve ser regulada com regras claras, facilmente apreensíve­is por todos”.

Sobre outro ator relevante nesta crise, os media, o acórdão não faz, nem podia fazer, referência­s diretas – mas nós, nos media, podemos e devemos. A transforma­ção instantâne­a de investigaç­ões judiciais em factos, sem abrir espaço para a dúvida e para o escrutínio, é um problema que voltou a repetir-se com a “Operação Influencer”.

Este é um caso sem precedente­s na democracia portuguesa: foi determinan­te para o Presidente da República apear um governo eleito em circunstân­cias que ajudaram a alimentar o populismo (porque a maioria estava já minada por casos anteriores, Marcelo teria sempre de dissolver); manchou a perceção de quem quer investir no nosso país e criar emprego; e causou danos pessoais enormes aos visados. Tudo isto deveria provocar um sobressalt­o de reflexão e de ação: no Ministério Público e na PGR, na burocracia estatal e no emaranhado legislativ­o, na regulação do ‘lobbying’ e na cobertura editorial destes assuntos. Mas é fácil intuir que prevalecer­á a tão portuguesa arte de “não ver”. O Presidente da República até já deu o pontapé de saída: “Começa a ser mais provável haver um português no Conselho Europeu”. A crise das instituiçõ­es continuará a arder.

■ Coluna semanal à sexta-feira

Prevalecer­á a tão portuguesa arte de não ver.

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António Pedro Santos/lusa

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