Jornal de Negócios

O Primeiro Tempo

- JULIETA MONGINHO (Texto) BERNARDO P. CARVALHO (Ilustração)

Guardo no meu primeiro exemplar da Constituiç­ão da República Portuguesa o teste de latim feito no dia 25 de Abril de 1974.

Às oito e meia da manhã, a professora entrou na aula com a notícia. Tão cheia de acrimónia que os sorrisos dos alunos permanecer­am engaiolado­s, como os presos políticos, e até o brilhozinh­o nos olhos se conteve, não fosse a platinada mestra plantar-se à frente da coluna de Salgueiro Maia e impedir a progressão.

Ao longo de cinquenta anos relembrei esse dia que não se deixa aprisionar no passado.

Conto-lhe a história recordando a professora à medida do tempo vivo, memória e desejo, pois é transforma­dora a natureza da data. Em plena liberdade, imagino a professora de latim como o deus Jano, a face do passado e a do futuro. Ora entra na sala de má catadura, ora com um sorriso. Ora manda fazer o teste como castigo, ora, sub umbra imaginaria arboris, solta os cabelos e anuncia a boa nova. Ora se submete às declinaçõe­s, ora eleva a voz nas odes de Horácio.

A professora pronunciou a palavra «revolução», o que constituía um pecado capital. A palavra pertencia à extensa lista das que nos tinham ensinado a calar, sem percebermo­s porquê, pois a explicação já seria, em si mesma, subversiva. Ser subversivo era como ter uma doença incurável ou esquecermo-nos da letra do hino da mocidade, ou mastigar a hóstia. Era não honrar pai e mãe e todos os legítimos superiores, sendo todos os superiores indiscutiv­elmente legítimos. Merecia penitência, para aprendermo­s a apreciar o cantinho do céu onde decorria a nossa vida arrumada na gaveta das sobras. Um céu de onde partiam aviões para a guerra e aonde chegavam cadáveres de meninos, colegas, primos, vizinhos, com medo de crescer.

A primeira vez que pude escrever a palavra liberdade foi em latim: Libertas/ libertas/ libertati/ libertate etcaetera

À tarde, o latim desaparece­u, a dupla professora foi à sua vida. Tudo se desvaneceu, excepto Salgueiro Maia em cima da chaimite. Que não caia, que ninguém lhe dê um tiro, agora que está quase. O coração batia pelos outros bravos e pelo povo apinhado, já em festa, mas o capitão Maia era o próprio coração da vitória. Spínola a aproximar-se, a chaimite em movimento, é agora, agora vai, agora podemos respirar, ou ainda não, e se o Maia cair numa cilada, e se as pessoas penduradas nas grades, se as pessoas penduradas nas árvores, se as unhas roídas, se os outros fizerem sangue.

Finalmente, rendido o derrotado, vozes ao alto, braços ao alto, cravos ao alto, ao sol dessa canção morena, que não quer saber da idade.

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