Saber quase tudo
Omundo digital “é a primeira sociedade verdadeiramente humana,” escreveu Vilém Flusser (1920-1991), o filósofo checo-brasileiro, porque é uma sociedade criada inteiramente pelos seres humanos. “Estranha vai ser a natureza”, avisou há décadas Marshall Mcluhan, o pensador dos media, referindo-se ao que viria a ser a, então antecipada, actual sociedade da informação. De um ponto de vista fundamental, à luz destas ideias e pensando nos Estados e nas organizações em geral, pode dizer-se que hoje a tecnologia é a estratégia e que a informação é a matéria com que se constrói a realidade. O “big data”, a ubiquidade da internet e dos smartphones, o enorme poder computacional que se atingiu e a aprendizagem da máquina são hoje em dia o contexto do poder mundial, político, militar, económico, cultural e social. Três episódios político-militares recentes ilustram este quadro novo, mas em desenvolvimento desde a segunda metade do século passado.
Na madrugada do passado domingo, dia 14 de Abril, o Irão lançou um ataque aéreo maciço, com drones e mísseis, contra Israel. Foram visados mais de 200 alvos, mas cerca de 99% dos drones e mísseis, que sobrevoaram os céus do Iraque, Síria, Jordânia, Cisjordânia, Arábia Saudita e Israel, foram interceptados pelos sistemas de defesa aérea israelitas, americanos e jordanos. Foi uma guerra de poder aéreo, mas antes disso, foi uma guerra de dados e informação. Tratou-se de um desempenho tecnológico com resultados notáveis, e não pode classificar-se de outro modo. Não menos importante, e ilustrativo dos tempos que correm, foram os avisos atempados dos Estados Unidos da América para a iminência de um ataque do Irão. Primeiro, os EUA alertaram para essa possibilidade, depois indicaram que seria no prazo de uma semana, finalmente referiram que seria nas 48 horas seguintes, até sábado. Foi na madrugada de domingo em Israel e no Irão, sábado na Europa e nos EUA.
Um mês antes do ataque do Irão a Israel, um outro aviso do mesmo género havia sido feito também pelo Governo dos EUA, com base em informações dos seus serviços secretos. Alertaram para um ataque terrorista prestes a acontecer em Moscovo. A 8 de Março passado, as embaixadas dos EUA apelaram a que os cidadãos norte-americanos deixassem a Rússia imediatamente, aconselhando também a que evitassem concertos e multidões. O Washington Post, jornal de referência norte-americano, noticiou que o aviso dos EUA sobre o potencial ataque terrorista em Moscovo incluía a possibilidade de o alvo ser a sala de concertos dos Crocus City Hall. A 22 de Março passado, um grupo de quatro homens armados invadiu o Crocus City Hall, em Moscovo, assassinando 140 pessoas e ferindo muitas dezenas, naquilo que foi o ataque terrorista na Rússia mais mortífero dos últimos 20 anos.
No início de 2022, e durante semanas, os EUA alertaram para a possibilidade de a Rússia invadir a Ucrânia, o que foi desvalorizado pela Europa e ridicularizado por Moscovo, tentando descredibilizar a espionagem americana. Os serviços secretos americanos indicaram que estavam seguros de que a guerra seria desencadeada e que, possivelmente, o dia 16 de Fevereiro seria o dia do ataque. Nesse dia, os media russos fala
A estratégia assenta numa escolha; “escolhemos saber tudo”, comentou Brzezinski, ex-conselheiro de segurança nacional dos EUA.
ram ironicamente no dia da “não invasão russa”. Menos de uma semana depois, a 24 de Fevereiro de 2022, as tropas russas tentaram tomar Kiev.
“Escolhemos saber tudo”, comentou há alguns anos Zbigniew Brzezinski (1928-2017), ex-conselheiro de segurança nacional dos EUA, investigador na Johns Hopkins University. A estratégia assenta numa escolha. Tecnologicamente, os EUA são o país mais avançado do mundo. Em alguns domínios têm enormes vantagens sobre os competidores, mesmo à China e ao seu surgimento nos últimos anos como actor de relevo no panorama global.
Tirando a sorte e o azar, que no longo prazo se anulam, nenhuma acção, nenhuma estratégia, pode ser melhor do que a informação em que se baseia. Doutro modo, a pedra angular na actual sociedade humana está em obter o máximo de informação e saber dar-lhe sentido, o que passa pela sofisticação tecnológica, pela integração de sistemas de informação e de comunicações, bem como pela automatização de tarefas e de decisões em escalas enormes. É um terreno óbvio do futuro do poder e está à vista.
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Artigo em conformidade com o antigo Acordo Ortográfico Coluna mensal à quinta-feira, excecionalmente é publicada hoje