Jornal de Negócios

Saber quase tudo

- FERNANDO ILHARCO Professor na Universida­de Católica Portuguesa

Omundo digital “é a primeira sociedade verdadeira­mente humana,” escreveu Vilém Flusser (1920-1991), o filósofo checo-brasileiro, porque é uma sociedade criada inteiramen­te pelos seres humanos. “Estranha vai ser a natureza”, avisou há décadas Marshall Mcluhan, o pensador dos media, referindo-se ao que viria a ser a, então antecipada, actual sociedade da informação. De um ponto de vista fundamenta­l, à luz destas ideias e pensando nos Estados e nas organizaçõ­es em geral, pode dizer-se que hoje a tecnologia é a estratégia e que a informação é a matéria com que se constrói a realidade. O “big data”, a ubiquidade da internet e dos smartphone­s, o enorme poder computacio­nal que se atingiu e a aprendizag­em da máquina são hoje em dia o contexto do poder mundial, político, militar, económico, cultural e social. Três episódios político-militares recentes ilustram este quadro novo, mas em desenvolvi­mento desde a segunda metade do século passado.

Na madrugada do passado domingo, dia 14 de Abril, o Irão lançou um ataque aéreo maciço, com drones e mísseis, contra Israel. Foram visados mais de 200 alvos, mas cerca de 99% dos drones e mísseis, que sobrevoara­m os céus do Iraque, Síria, Jordânia, Cisjordâni­a, Arábia Saudita e Israel, foram intercepta­dos pelos sistemas de defesa aérea israelitas, americanos e jordanos. Foi uma guerra de poder aéreo, mas antes disso, foi uma guerra de dados e informação. Tratou-se de um desempenho tecnológic­o com resultados notáveis, e não pode classifica­r-se de outro modo. Não menos importante, e ilustrativ­o dos tempos que correm, foram os avisos atempados dos Estados Unidos da América para a iminência de um ataque do Irão. Primeiro, os EUA alertaram para essa possibilid­ade, depois indicaram que seria no prazo de uma semana, finalmente referiram que seria nas 48 horas seguintes, até sábado. Foi na madrugada de domingo em Israel e no Irão, sábado na Europa e nos EUA.

Um mês antes do ataque do Irão a Israel, um outro aviso do mesmo género havia sido feito também pelo Governo dos EUA, com base em informaçõe­s dos seus serviços secretos. Alertaram para um ataque terrorista prestes a acontecer em Moscovo. A 8 de Março passado, as embaixadas dos EUA apelaram a que os cidadãos norte-americanos deixassem a Rússia imediatame­nte, aconselhan­do também a que evitassem concertos e multidões. O Washington Post, jornal de referência norte-americano, noticiou que o aviso dos EUA sobre o potencial ataque terrorista em Moscovo incluía a possibilid­ade de o alvo ser a sala de concertos dos Crocus City Hall. A 22 de Março passado, um grupo de quatro homens armados invadiu o Crocus City Hall, em Moscovo, assassinan­do 140 pessoas e ferindo muitas dezenas, naquilo que foi o ataque terrorista na Rússia mais mortífero dos últimos 20 anos.

No início de 2022, e durante semanas, os EUA alertaram para a possibilid­ade de a Rússia invadir a Ucrânia, o que foi desvaloriz­ado pela Europa e ridiculari­zado por Moscovo, tentando descredibi­lizar a espionagem americana. Os serviços secretos americanos indicaram que estavam seguros de que a guerra seria desencadea­da e que, possivelme­nte, o dia 16 de Fevereiro seria o dia do ataque. Nesse dia, os media russos fala

A estratégia assenta numa escolha; “escolhemos saber tudo”, comentou Brzezinski, ex-conselheir­o de segurança nacional dos EUA.

ram ironicamen­te no dia da “não invasão russa”. Menos de uma semana depois, a 24 de Fevereiro de 2022, as tropas russas tentaram tomar Kiev.

“Escolhemos saber tudo”, comentou há alguns anos Zbigniew Brzezinski (1928-2017), ex-conselheir­o de segurança nacional dos EUA, investigad­or na Johns Hopkins University. A estratégia assenta numa escolha. Tecnologic­amente, os EUA são o país mais avançado do mundo. Em alguns domínios têm enormes vantagens sobre os competidor­es, mesmo à China e ao seu surgimento nos últimos anos como actor de relevo no panorama global.

Tirando a sorte e o azar, que no longo prazo se anulam, nenhuma acção, nenhuma estratégia, pode ser melhor do que a informação em que se baseia. Doutro modo, a pedra angular na actual sociedade humana está em obter o máximo de informação e saber dar-lhe sentido, o que passa pela sofisticaç­ão tecnológic­a, pela integração de sistemas de informação e de comunicaçõ­es, bem como pela automatiza­ção de tarefas e de decisões em escalas enormes. É um terreno óbvio do futuro do poder e está à vista.

Artigo em conformida­de com o antigo Acordo Ortográfic­o Coluna mensal à quinta-feira, excecional­mente é publicada hoje

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Jim Young/reuters
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