Volta ao Mundo

O ÚLTIMO OLHAR ANTES DE SAIR PARA SEMPRE

- Uma crónica de José Luís Peixoto

As malas com que regresso a casa são sempre mais pesadas do que aquelas com que parti. Depois de arrumá-las e de conseguir fechá-las, na hora de deixar o quarto de hotel, não consigo resistir a um olhar sobre aquilo que deixo para trás. Poucos cenários são mais melancólic­os do que um quarto de hotel na hora da saída. Os quartos de hotel albergam memórias de muitas pessoas desconheci­das entre si. Aquelas paredes são testemunha­s silenciosa­s de histórias que só conseguimo­s imaginar. Na hora de sair do quarto de hotel, não pensamos nisso. Os lençóis estão ainda mexidos pela agitação ou pela tranquilid­ade do nosso sono, mantêm ainda os contornos e o cheiro do nosso corpo. Durante o tempo que ali estivemos, um dia, dois dias, talvez um pouco mais, tivemos uma vida entre aquelas paredes. Na hora de saída, contemplam­os o fim desse tempo. Viajar é despedir-se muitas vezes, não vale a pena esconder essa verdade. Como na vida, quando fechamos a porta do quarto de hotel pela última vez, podemos estar já a pensar no destino onde chegaremos a seguir, o regresso a casa talvez, mas também pode acontecer que, por um instante, tenhamos consciênci­a de que, com muita probabilid­ade, nunca mais voltaremos àquele quarto exato. O que fomos ali ficará apenas na nossa memória. Ao fecharmos a porta, descermos no elevador e devolvermo­s a chave na receção, o que fomos começará a dissolver-se, deixará de ser este tempo e passará a ser um tempo que passou, que está lá atrás. É também assim com a passagem das horas, dos dias, dos anos. É também assim com a passagem dos instantes. As despedidas, no fundo, são diárias, existem em todos os segundos. Esse afastament­o do que foi e essa aproximaçã­o do que virá é um caminho e, ao mesmo tempo, é uma viagem. As paisagens distraem-nos e, por isso, precisamos de momentos que, com clareza, assinalem um fim.

É esse o caso da hora de saída dos quartos de hotel. As cortinas continuam a filtrar a claridade da mesma maneira que o fizeram quando ainda estávamos lá, cheios de tempo e de planos. As toalhas onde nos limpámos estão no chão, íntimas e abandonada­s. Tudo são pequenos despojos do passado, restos de momentos, objetos que permanecer­am na posição em que os deixámos, ainda à nossa espera.

A vida continua sempre. Esta é a frase batida em que queremos acreditar na hora de todos os checkouts. Então, convencemo-nos de que nenhuma despedida é definitiva, havemos de regressar, sim, havemos de regressar, ou esforçamo-nos por não pensar. Esse é o remédio mais eficaz contra a melancolia.

No entanto, também a melancolia faz falta, também alguma melancolia é necessária. Sem ela, perderíamo­s uma dimensão importante de ser humano e de sentir.

Desde há anos que, na hora de fechar a porta do quarto de hotel, na hora de partir, me habituei a aceitar essa melancolia, a sentir-me grato por ela. Se tenho pena do que deixei para trás, fantasmas, palavras, é porque foi bom, valeu a pena vivê-lo.

Aquelas paredes são testemunha­s

silenciosa­s de histórias que só conseguimo­s imaginar. Na hora de sair do quarto de hotel,

não pensamos nisso.

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