Uma odisseia por um tempo que já não existe, em locais que mudaram de nome.
Percorremos a Terra e a Historia para conhecer lugares que ja nao existem. Uns mudaram de nome, outros foram assimilados, mas todos tem o que nos contar. Das ilhas Sandwich, à Cochinchina, da Republica do Biafra à de Nova Granada. Porque nada nos impede d
Ésempre preciso começar por algum lado, mesmo quando não se vai a lado nenhum. Como é o caso. Não é fácil ao homemviajante, que por estes dias está como a fera quando encurralada, partir em expedição sem abandonar o sofá da sala. No entanto, tamanho exercício pode revelar-se proveitoso. Pelo que consta, Almeida Garrett não necessitou de sair do quarto para imaginar as Viagens na Minha Terra. É bem verdade que imaginar não é o mesmo que ir. Tal como ir não se dá bem com impossível. Mas é precisamente de viagens irrealizáveis, impossíveis, que trata este artigo. Sítios que jamais poderá visitar, por muito que seja essa a sua determinação: já não existem. Pelo menos da forma como agora os recuperamos.
Sai uma sandes?
Comecemos, então, por Sandwich. Abalar para as Sandwich será, por certo, a viagem mais concorrida nestes tempos de confinamento generalizado. Uma rigorosa medição perímetroabdominal, quando tudo isto acabar, poderá ser útil para confirmar tamanha evidência. Enquanto não, é bom que se recorde que o capitão James Cook, para além de pirata encartado, era também um jogador compulsivo. Era viciado em whist que, mal comparado, é uma espécie de sueca à inglesa. Adictos à jogatana, como Cook o era, havia muitos, mas nenhum tão agarrado como um tal John Montagu, que nem para comer abandonava a mesa de jogo: pedia ao garçon dois pedaços de pão entremeados com rodelas de linguiça ou, em último recurso, quaisquer outras carnes sobrantes do cozido do almoço. Uma ideia genial. Tão genial que quando Cook avistou em 1778 um arquipélago perdido no meio do Pacífico não teve dúvidas, deu-lhe o nome do seu camarada de batota. Montagu? Não, Sandwich. Que era o título nobiliárquico do duque que popularizou a nível planetário a sandes. É provável que nenhum linguista se tenha dedicado com atenção ao tema da sandes, mas o engenho da língua portuguesa produziu, e isso é irrefutável, a mais completa e complexa das designações. Um substantivo plural que nomeia uma entidade singular. Dois nacos de pão recheados com o que mais houver à mão, transformam-se numa coisa una e apenas divisível à dentada: a sandes. iajar tem destas coisas. E, como dizem alguns poetas, não há viajante como o idioma português. Que terá aportado às Sandwich precisamente um século após James Cook as ter batizado. É, por certo, impróprio chamar “viajantes” aos primeiros lusíadas, na maioria ilhéus, que se “instalaram” no Reino de Sandwich no último quartel do século XIX. Sim, provavelmente Sandwich terá sido a única monarquia ao jeito europeu em toda a história da chamada área de influência do subcontinente norte-americano. Mas assim o entendeu e melhor o fez o grande monarca fundador Kamehameha I. É complicada, a onomástica sandwichenha. Começando em Barack Obama. E acabando em Lilioukalani. Que foi a última rainha de Sandwich, antes de o governo federal americano ter percebido que as ilhas eram... rentáveis. Principalmente à força de trabalho escravo nas roças de cana- de-açúcar e de ananases, onde o tal “viajante” português era então rei e senhor sob a esclarecedora distinção de “preto”. Não deixa de ser irónica, a História. Mas também não se pense que tudo aquilo era triste, nem que tudo aquilo era fado para os nossos patrícios. Basta fechar os olhos e imaginar os cavaquinhos a desafiar as ondas na cintura das dançarinas indígenas. Numa bela praia paradisíaca. Numa bela noite de luar. Tudo isto existe...
Despoletar ou espoletar?
Esta é daquelas que dá pano para mangas. A terminologia é a militar. E vem ao itinerário por dois motivos distintos. Embora nenhum deles verdadeiramente válido, mas enfim. O primeiro, e em jeito de adeus a Sandwich, é para relembrar que o território foi fustigado na Segunda Grande Guerra pela aviação japonesa, principalmente em Pearl Harbor. O que teve duas implicações concretas: a entrada dos EUA no conflito e a consequente ascensão de Sandwich como a quinquagésima estrela da bandeira americana, agora sob a denominação de Havai. E bom, para que se saiba que nem tudo correu assim tão mal, estima-se que hoje perto de 10 por cento da população seja lusodescendente. Que, embora lhe tenham mudado o nome para ukulele, o cavaquinho ainda se houve nas noites mornas. E que, ou das velhas Sandwich não se tratasse, a principal fábrica de salsichas lá da terra, a Redondo’s, é de um português. Só mais um aparte: o grande sucesso da ementa local dos restaurantes McDonald’s é um prato combinado de ovos mexidos, arroz e uma coisa a que eles chamam “salsicha portuguesa”. É mentira. Aquilo é uma linguiça. Tem a ver com a atual Colômbia, a segunda razão para fazer despoletar esta viagem impossível (ou será espoletar?). Seria para lá que iríamos, para a Colômbia, caso a nossa verdadeira intenção não fosse antes redescobrir a República da Nova Granada. Qualquer viajante minimamente astuto depressa se questionará sobre o raio do topónimo. Nova Granada? Por quê granada? Por quê nova? Por quê ali, no interstício noroeste na América do Sul? A resposta a tantas dúvidas parece resumir-se a um fruto muito peculiar, a romã.
Romã, chamamos nós, falantes do Português, àquela coisa esquisita com pepitas cor-de- sangue no interior de uma carapaça que os romanos gostavam de comer. Fruta romana, deu em romã. Porreiro, pá! Já os romanos, eles próprios, gente culta e evoluída, lhe chamavam fruta de grãos. De grão, a granada foi um saltinho que a língua espanhola também se dispôs a partilhar. Caso, em Tordesilhas, Portugal tivesse ficado com a metade do mundo que calhou em sorte a Castela, o mais natural é que os insurgentes de 1830-1858 que unificaram a atual Colômbia, o atual Panamá e mais uns pontinhos dispersos pelo caldeirão caribenho, tivessem fundado não a República da Nova Granada, mas sim a excêntrica República da Nova Romã. Tinha sido tão lindo, tinha. Na impossibilidade de visitar a fugaz Nova Granada, que já possuía todas aquelas maravilhas paisagísticas e naturais que se converteram na atual Colômbia e que tão bem documentadas estão na Netflix, é conveniente que se ressalve o seguinte: a romã (granada) não é a cultura predominante daquela geografia. Das possibilidades restantes sobre a origem do nome, a mais convincente será a da abundante ocorrência de um mineral granulado, predominantemente vermelho, que também levou o nome de granada. Exclui- se,
assim, em definitivo, a hipótese do topónimo provir da granada militar, uma vez que esta apenas se generalizou em tempo posterior à implantação e consequente implosão da República da Nova Granada. O que não implica que a granada de mão, segundo revelou o próprio chinês que a inventou, Zhen Tian Lei, não tivesse sido inspirada numa romã. Já agora: a granada é composta pela tal romã de metal recheada de pólvora e por uma cavilha que, quando retirada, incendeia uma coisa que a tropa chama espoleta e que faz explodir a dita cuja. Ativar a espoleta é espoletar. Em sentido inverso, apagar a espoleta é despoletar. Afinal como fazemos para rebentar com alguma coisa? Espoletamos? Ou despoletamos? O idioma português tem destas coisas: é o único que se conheça que chama granada a um... cozido de grãos.
Para inglês ver
Por falar em comida, e antes de abalar para uma paragem que passou à História precisamente pela falta dela, de comida, uma ressalva para o facto de a Colômbia e, por legítima precedência, a República da Nova Granada, ser ainda hoje a maior homenagem que a humanidade prestou ao marujo europeu que descobriu (achou, encontrou, topou, como se queira) o continente americano. Cristóvão Colombo. Uma figura incontornável da aventura marítima humana e, ao mesmo tempo, um dos seus mais indesvendáveis protagonistas. Italiano? Castelhano? Português de Cuba? Nem o maior feito de Colombo, que foi o de lançar âncoras pela primeira vez nas Índias Ocidentais, lhe valeu o batizado do novo continente. As famas e as glórias foram para um tal Vespucio, Américo para os amigos. E, para Colombo, apenas a comida. Ou melhor, com recurso a elementos comestíveis, a autoria, a explicação, a enunciação da teoria da batata, comprovada empinando um ovo sobre o tampo da mesa, escaqueirando levemente uma das suas extremidades. É pouco. É injusto. É...
É no regresso que o viajante faz as contas às riquezas conseguidas durante a ida. Isto é tanto válido para Colombo, como para aquele que embarcou imprudentemente nesta viagem de destinos impossíveis, como também para os corsários ou para os negreiros transatlânticos. Que sempre os houve. E ainda os há. Aliás, quando Portugal foi constrangido a abolir a escravatura, em 1836, o nosso engenho linguístico produziu uma das suas expressões idiomáticas mais assinaláveis e demagógicas: “é para inglês ver”. Era só um aviso para o futuro.
Que é o nosso presente. Estamos agora no epicentro da velha escravatura, o Golfo da Guiné. Mais em concreto no delta do rio Níger. E ainda
em maior detalhe, na República do Biafra. É espantoso como uma realidade que durou apenas três anos, entre 1967 e 1970, se mantém tão viva ao fim de meio século. Assim se vê a força da TV. A guerra de secessão do Biafra face à Nigéria foi, talvez, a primeira em prime-time televisivo. E Salazar, que tomou o partido dos rebeldes, não deixou de consentir a exibição das imagens de desolação que marcaram o Biafra para a posteridade: os refugiados, os estropiados e, acima de tudo, as crianças subnutridas. Mas, por certo, não foram os ventres dilatados de milhares e milhares de crianças que foram condenadas à pena de morte, pela fome, nem os maravilhosos bosques e florestas do país, sequer a biodiversidade das savanas e das altas montanhas, que impeliu o governo português, também ele a braços com três frentes de guerra de independência em África, a mostrar apoio à jovem república. Será que há petróleo no Beato? Desculpem, no Biafra? Que outra mercadoria melhor serve para atear uma boa guerra? Esta durou três anos e só teve um dia de armistício: 4 de fevereiro de 1969, que calhou a uma terçafeira, dia em que o Santos defrontou a seleção do Meio Oeste, no Benim, junto à fronteira com o Biafra. Parar uma guerra não é para todos: Pelé, Raul Solnado...
Canela até ao pescoço
Assim como travar guerras, muitas guerras, e vencê-las, sistematicamente, uma atrás da outra, também está apenas ao alcance de alguns. Melhor dizendo, de algum: Alexandre. É para o que sobra do seu império que trataremos agora de embarcar, não sem antes citar Aristóteles, como um último adeus (um tudo nada lamecha, é um facto) ao Biafra: “Haverá flagelo mais terrível do que a injustiça com armas na mão?”. Nada como uma boa e velha pergunta retórica para afundar as mágoas. E seguir em frente. Aristóteles? Nesta fase da expedição? Pois é, estimado e impaciente companheiro de caminho: Aristóteles. O velho sábio fundador da escola peripatética foi também o tutor de Alexandre, muito antes de este chegar a ser grande.
A dúvida aqui não reside em Aristóteles, mas no facto de algum dia o jovem perípato ter prestado atenção às palavras do mestre, antes de se lançar à zaragata por aí a baixo, direito à Índia, a África, à Pérsia. Nota de rodapé: Perípato é um termo giro, mas não tem nada a ver com venatória, construção civil ou palermice. É apenas o tipo que aprende com um professor que ensina a passear de um lado para o outro. Quem sabe se não foi Aristóteles que fez de Alexandre um perípato de espada e elmo para o resto da sua curta vida?
A história, já se viu com os portugueses feitos escravos em Sandwich, está repleta de ironias. E a Macedónia de hoje, melhor, a República da Macedónia do Norte, é apenas mais uma. O que sobrou do grande império de Alexandre, é hoje um santuário montanhoso envolvente ao rio Vardar, na cordilheira balcânica, tão exuberante quanto inóspito e sem qualquer nesga de acesso ao mar, essa utopia infindável que guiou o perípato de Aristóteles desde o Mediterrâneo ao Índico, a toque de espadeirada ou, como se diz na gíria futebolística, reconhecendo nos adversários canela até ao pescoço. E assim se fez e levantou um dos maiores impérios da Humanidade, tão vasto e tão diverso que esta crónica jamais abarcaria, para lá de Cabul e de Samarcanda, para cá do Nilo e da Babilónia. Só mesmo a gastronomia, essa exata ciência das mais elementares necessidades humanas, poderia abreviar o gigantismo do feito de Alexandre
numa simples salada de macedónia. Onde cada legume que a compõe representa uma das paragens do mundo alexandrino, sendo que, como diz o agradável povo português com uma certa malícia, quanto mais verdura melhor. Também há quem faça macedónias de frutas.
Fernão, mentes?
Até o grande industrial vinícola bombarralense Abel Pereira da Fonseca soube dizer aos filhos, antes de morrer, que das uvas também se fazia vinho. Ele sim, um sábio, qual Aristóteles, qual quê. Alexandre, O Grande, morreu aos 32 anos depois de lhe terem dado a beber vinhaça marada. O homem que desenvencilhou o nó górdio não resistiu à ressaca. É a vidinha. O império ficou por ali mesmo, a assomar os territórios do Golfo Pérsico, a península arábica, o lado de lá do estreito de Ormuz. O sonho de qualquer simples homem, como nós viajantes, por conseguinte.
Coisa que a Alexandre jamais ocorreu, foi o que fizeram as tribos do deserto para acabar com a pirataria no mar arábico: uma trégua. E não se pense que é de hoje, nem de ontem sequer, a proliferação do corso na lingueta de mar que separa a Pérsia da Arábia. É de antes de ontem. A crer, como qualquer bom cidadão crerá, no relato de Fernão Mendes Pinto, o aventureiro lusitano que foi de galé em galé até ao Japão e num salto visitou o reino do Prestes João, andou à bulha no mar com turcos otomanos que o aprisionaram e venderam a um grego que, por sua vez, o mercou com um judeu que o levou para Ormuz onde foi resgatado por um patrício nosso. Lá está, há sempre um bom dum português mesmo nos tais sítios que a própria razão tem dificuldade em alcançar.
Naquele tempo, o povo da região dedicava-se ao fraco pastoreio, em terra, e à forte sementeira de ostras de pérola, nos arrecifes. Era esta a grande riqueza dos atuais Emirados Árabes Unidos, antes da invenção do ouro negro. Mas como as ostras apenas se dão no mar e como aquele mar ainda no século XIX era mundialmente conhecido como “dos piratas”, os ingleses propuseram então um acordo entre os xeques e entre os xeques e os ingleses, segundo o qual os ingleses protegeriam os xeques de qualquer agressão marítima e, em troca, os xeques passavam um cheque em branco aos ingleses em todos os negócios presentes e futuros.
Unidos, mas ainda não tanto quanto isso, os pequenos emirados do fim do deserto da Arábia, agora sobre protetorado britânico, passaram a designar-se por Estados da Trégua –Trucial States. É um nome catita para um país de países que deve a sua junção a outro país que nenhum dos países que o integram. São as vicissitudes desta vida. E um acordo de princípios é, em princípio, um acordo. Quando em 1930 se desconfiou que havia petróleo sob as areias da Trégua, é claro que a prospeção foi entregue a uma empresa... americana. O resto da história é conhecida: torres arranha-céus, rolls-royces, shoppings à maneira, beluga, resorts... enfim, tudo, tudo, tudo, menos bebidas fermentadas ou destiladas. Alexandre jamais teria falecido num sítio assim, como Trégua.
Apocalypse Now
Estamos a chegar ao fim desta jornada irrealizável, só mesmo própria para o homem-viajante em regime de confinamento forçado, prisioneiro por vontade própria e por razão alheia, senhor todo-poderoso do sofá da sala, soberano da calça de fato-de-treino e do chinelo-de-enfiar, bicho encantoado, entediado. Mas tão livre de espírito como Melville e a sua baleia, como todas as Dulcineias deste mundo e também as de La Mancha, como Alice defronte do espelho, como o balão de ar quente de Willy Fog a ascender nos descrentes céus de Londres. Quanto tempo duraria esta nossa viagem impossível, os mesmos 80 dias? E como a faríamos, dentro de uma cesta de vime? E onde a daríamos por terminada, no fim do mundo? Isso mesmo, acabemos no fim do mundo que, para os navegantes portugueses de quinhentos levava o nome de Cochinchina. A designação é difícil de pronunciar, mas não apareceu por obra e graça das monções. Os malaios, gente também dada ao
mar, chamavam Cochim a toda a grande região para lá do Golfo de Benguela. Como os portugueses já tinham, feito da outra Cochim, na Índia, a sua sede asiática, sem grande criatividade chamaram Cochim da China às terras do fim do mapa que hoje, mais coisa menos coisa, correspondem ao território do Vietname. Uma vez que a cartografia da região não era de fiar, os portugueses deram ao mundo não uma nova possessão, aliás os negócios ali correram-nos horrivelmente mal, mas uma nova designação para um local longínquo, desterrado, de geografia incerta, quase impossível de alcançar: a Cochinchina. Por falar em maus negócios: há filmes de Hollywood, e não são assim tão poucos quanto isso, que dão conta dessa fatalidade para os ocidentais. Ou, como diria John Rambo do fundo da sua mais fina sensibilidade, “aqui, as coisas às vezes são confusas”. E, entretanto, houve-se o flap-flapflap das pás de um helicóptero de resgate.
Let’s go home!