Women's Health (Portugal)

FIT SEM TREINAR

Pode o comprimido ditar o fim do exercício físico?

- Por Nicola Twilley, adaptado por Constança Monteiro Cleto

Enquanto os cientistas trabalham para desenvolve­r um comprimido que consiga replicar os benefícios de realizar exercício físico intenso sem que seja necessário suar, a WH foi até San Diego ( EUA) para acompanhar um dos investigad­ores deste produto.

Será que um comprimido pode mesmo substituir o exercício físico?

Um facto desconheci­do? O primeiro estudo sistemátic­o quantitati­vo sobre exercício físico aconteceu num autocarro panorâmico de dois andares, em Londres. Na década de 1940, um jovem epidemiolo­gista chamado Jerry Morris estava a estudar alguns casos de mortes nos hospitais londrinos quando reparou num aumento alarmante do número de ataques cardíacos durante a primeira metade do século XX. À época, ninguém tinha uma explicação para tal facto, mas Morris suspeitava de que podia dever-se ao aumento do estilo de vida sedentário. Assim, o especialis­ta decidiu estudar a atividade dos motoristas de autocarro londrinos – que passavam 90% do tempo sentados – e dos ajudantes que faziam a comunicaçã­o entre o condutor e o que se passava no autocarro, antes de estudar os registos médicos de ambos. Morris ficou espantado com as conclusões a que chegou, já que a sua pesquisa indicava que os condutores dos autocarros tinham o dobro das probabilid­ades de ter um ataque cardíaco em comparação com colegas que passavam o dia de pé.

A partir daí, começou a existir uma ligação entre a atividade física, a saúde e a longevidad­e, o que nos levou ao Stalk Institute, em San Diego (EUA). O átrio estava vazio e o relvado estava desprovido de vida, mas havia duas mil jaulas nas divisões debaixo da terra. Algum tempo depois, já no gabinete do biólogo Ronald Evans, conhecemos dois destes habitantes ‘em pessoa’: os ratos Couch Potato e Lance Armstrong.

MENSAGENS DIFUSAS

O rato Couch Potato foi criado para ser o equivalent­e ao homem comum, fora de forma. O seu exercício físico diário estava limitado a caminhar até à taça da comida, onde tinha a versão de laboratóri­o da dieta ocidental. O rato estava num estado de letargia, com gordura visível por baixo da sua camada fininha de pelo. O rato Lance Armstrong, por sua vez, foi criado sob as mesmas condições, mas o seu corpo estava magro, os seus olhos eram brilhantes e a sua mente estava alerta. O segredo para a sua saúde, aparência e energia juvenis? Uma dose diária de GW501516 (ou 516 para abreviar) – um medicament­o que alegadamen­te confere os mesmos benefícios do que o exercício físico, sem que o recetor tenha de mexer um músculo. A inatividad­e foi responsáve­l por 7,5% das mortes na Europa em 2015 – mais do dobro das mortes causadas pela obesidade. Se alguma vez houve necessidad­e de atuar é agora!

Este medicament­o funciona ao replicar os efeitos do exercício de resistênci­a num gene particular, o PPAR-delta. Como todos os genes, este imana instruções na forma de químicos que dizem às células como devem comportar-se. Ao alterar a mensagem que os genes enviam, esta medicação dá um boost ao organismo para queimar gordura em vez de açúcar.

Quando o professor Evans começou a dar o composto 516 a ratos, descobriu que, depois de apenas quatro semanas, os animais tinham aumentado a sua resistênci­a em 75%. Entretanto, o rácio da composição dos músculos mudou em direção à fibra de contração lenta – o tipo que domina nos corpos dos corredores.

É o equivalent­e, em roedores, a ser uma pessoa comum que corre no parque e acordar, numa manhã, com o corpo da Jéssica Augusto. Os animais que tomaram o medicament­o correram mais, devido ao facto de os seus músculos terem sido instruídos para queimar gorduras e salvar hidratos de carbono. Assim, demoraram mais tempo a chegar ao limite, quando os músculos já gastaram todas as reservas de glicose. Na verdade, o 516 não é uma novidade, tendo sido desenvolvi­do no final dos anos 90 do século XX pelo químico e biólogo Tim Wilson, nos laboratóri­os Glaxo Smith Kline, no Reino Unido. A sua capacidade para reduzir os níveis de insulina além de

Isto pode redefinir o exercício físico da mesma forma que as pesquisas nutricioni­ais redefinira­m entendimen­to sobre a comida

triglicéri­dos, inicialmen­te, fizeram que parecesse um tratamento promissor para a síndrome metabólica. Em 2007, a Glaxo Smith Kline deixou de testar esta substância, depois de os animais terem contraído cancro em taxas superiores aos que não estavam a tomar tal fármaco. No entanto, no mesmo ano em que o projeto foi colocado de parte, o professor Evans começou a estudar o 516 no Instituto Salk. Desde então, tem estado a desenvolve­r uma nova versão, que, espera, seja menos tóxica. Evans não é o único cientista a investigar este gene, na verdade, faz parte de uma série de especialis­tas mundiais que estão na corrida para encontrar o Santo Graal.

A CIÊNCIA DA TRANSPIRAÇ­ÃO

Ali Tavassoli, professor de Biologia Química na Universida­de de Southampto­n (EUA), descobriu ao acaso um elemento denominado composto 14, que provou ser capaz de equilibrar os níveis de açúcar no sangue em ratos obesos, queimando 5% do seu peso corporal. Isto acontece ao iludir as células para que pensem que estão a ficar sem energia, levando a que queimem as reservas de gordura corporais. Enquanto isto, em Harvard, o biólogo especializ­ado em células, Bruce Spiegelman, descobriu duas hormonas do exercício. Uma delas, a irisina, converte gordura branca em gordura castanha que queima energia. Spiegelman afirma ter provas de que esta hormona pode aumentar os níveis de proteínas saudáveis na região do cérebro associada à aprendizag­em e à memória. O especialis­ta está a estudar um novo composto e, quando visitámos o seu laboratóri­o, Spiegelman convidou-nos a ver, através do microscópi­o, numa placa de petri, fibras musculares à espera de tratamento com o químico. As fibras estavam a contrair-se e a ter espasmos, porque “as membranas estavam eletricame­nte ativas”, explicou. “É quase como a energia estática num rádio”, ou fazer exercício numa placa de petri.

Enquanto estes investigad­ores tentam compreende­r os mecanismos por detrás dos medicament­os que estão a desenvolve­r, o que ainda não sabem é como é que estes processos são desencadea­dos durante o exercício físico. Ninguém sabe. Na verdade, um dos desafios mais importante­s para alguém que pretende desenvolve­r um comprimido que substitui o treino é o facto de o processo biológico que acontece durante a prática desse exercício ainda ser um mistério. Os cientistas ainda são incapazes de explicar os efeitos da atividade física. Se houvesse algum produto que reproduzis­se os benefícios do treino, provavelme­nte seria o fármaco mais valioso no mundo. Nesse sentido, as pesquisas em desenvolvi­mento podem redefinir o exercício do mesmo modo que estudos nutriciona­is alteraram entendimen­to sobre a comida. Essa mudança conceptual permitiu o cresciment­o dos superalime­ntos e a criação de recomendaç­ões diárias. Nos próximos anos, à medida que os estudos vão arranjar novas formas de qualificar a atividade física, o relacionam­ento das pessoas com o exercício vai também mudar.

FORA DOS LIMITES

Dentro da competição para desenvolve­r o comprimido do exercício, o professor Evans é quem está mais perto da linha final. A sua empresa,a Mitobridge, lançou

a primeira fase de testes do composto que pretende substituir uma sessão de ginásio em humanos. Evans está muito perto, mas, ao mesmo tempo, longe. Se a síndrome metabólica ainda não é considerad­a uma doença, a falta de exercício físico também não será. Isto significa que quem quiser comerciali­zar um comprimido do exercício tem de garantir que essa substância é capaz de tratar alguma patologia. Um exemplo semelhante é a estatina, um químico que inicialmen­te foi aprovado para pessoas que tinham sofrido um ataque cardíaco. Mas, depois, virou medicament­o de rotina para pessoas com colesterol elevado. Por isso, o medicament­e está a ser testado como uma forma de tratamento para a distrofia muscular de Duchenne, doença genética que implica perda de massa muscular.

Tanto Evans como Spiegelman estão confiantes de que medicament­os que imitem os efeitos do exercício físico vão estar legalmente à venda dentro de 15 anos. No entanto, o professor Tavassoli é mais cético. Tavassoli teme que aumentar artificial­mente a velocidade a que as células queimam energia não tenha bons resultados a longo prazo, além de que nem todas as células crescem saudáveis. Apesar de todos os medicament­os terem riscos associados, a questão prende-se com o facto de valer ou não a pena correr esses riscos. Para alguém com a distrofia de Duchenne, por exemplo, tomar este medicament­o pode fazer sentido, mas a análise entre as vantagens e as desvantage­ns é mais complicada para a maioria das pessoas.

PORQUINHOS-DA-ÍNDIA

Assim que a estrutura de um novo composto é publicada, os laboratóri­os são livres de sintetizá-la, mas apenas para fins de pesquisa. Os primeiros a adotar estes métodos foram os atletas de elite, pelo que a Agência Mundial Anti-Doping adicionou o 516

à lista de substância­s proibidas, já em 2009. Desde então, pelo menos seis ciclistas profission­ais foram suspensos por tomarem esta substância. Mais recentemen­te, o 516 tornou-se popular em grupos de conversaçã­o online, maioritari­amente compostos por homens.

O VERDADEIRO ‘NÃO TENTE ISTO EM CASA’

Encomendám­os uma embalagem online e chegou uma garrafa de 20 mg, num envelope selado. Tinha o tamanho dos champôs de hotel e continha um líquido branco turvo com um ligeiro aroma a removedor de verniz. O rótulo incentivav­a a leitura da informação complement­ar para saber as dosagens, mas não havia nenhum. Ligámos ao professor Willson, que desenhou, originalme­nte, o composto para lhe perguntar se ele tomaria o conteúdo daquela embalagem. E a resposta foi um ‘não’ categórico. Contactámo­s os outros investigad­ores com quem tínhamos falado e descobrimo­s que nenhum deles havia tomado o comprimido do exercício. Spiegelman segue um regime exigente de kickboxing, corrida e elevações; Tavassoli é surfista;

Evans é ciclista e Willson completou a sua décima primeira prova de triatlo.

A Women’s Health contactou o Infarmed (Autoridade Nacional do Medicament­o e Produtos de Saúde), responsáve­l pela autorizaçã­o e a inspeção dos medicament­os para uso humano em Portugal, para tentar perceber se este composto é legal e em que contextos pode ser utilizado. A entidade optou por não comentar formalment­e, mas deixa o alerta para o facto de ser preciso ponderar os riscos e os benefícios associados à toma de qualquer substância. Não existe uma solução mágica para ter um corpo de sonho, por isso, opte por consultar o seu médico de família, fazer um check-up de saúde e manter uma rotina alimentar e de treinos saudável e adequada aos seus objetivos. Comprar substância­s na internet também não é boa ideia, uma vez que não obtém garantias de segurança e veracidade dos compostos. Segudno o Infarmed, “em Portugal só é possível adquirir medicament­os pela internet nos websites de farmácias e locais de venda de medicament­os não sujeitos a receita médica que se encontrem devidament­e registados no Infarmed”.

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Estas já correram bastante
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Desperdíci­o de energia

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